Necessários no sentido de riscar, traçar linhas que podem ser desenhos ou letras compondo uma ideia... ou mesmo os riscos que somos levados a correr durante a vida... Tanto os riscos/traços/letras quanto os riscos/viver/arriscar são necessários para a sobrevivência dos nossos sonhos, nosso ego, e até mesmos dos nossos fantasmas...


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Sobre o “Romance do Nordeste Brasileiro – São Chico”, de Agripa Vasconcelos


Em julho de 2007, fui presenteado por dona Mara Vasconcelos com um exemplar do “romance do nordeste brasileiro – São Chico”, de autoria de seu pai, Agripa Vasconcelos, de quem sou leitor e admirador antigo. Editada em 2004, a publicação foi patrocinada pelo Sesc Minas Gerais.

Nesse romance, Agripa constrói lentamente a história de uma paixão proibida, que vai surgindo aos poucos e criando uma tensão entre as personagens, formulando uma trama que se revela brilhante ao final do romance, pois que, prenunciando uma tragédia shakespeariana, é solucionada de forma objetiva.

Como em toda sua obra, Agripa demonstra a capacidade de recolher histórias localizadas no tempo e lugar e inseri-las de modo natural no desenrolar do romance, apresentando as curiosidades e culturas da região em vários tempos; a análise sutil da psicologia das personagens, cada uma em sua posição na escala social, revela no autor mais uma vez o arguto observador da alma humana. Outro dado digno de nota é a precisão literária e a sensibilidade poética com que Agripa titula os capítulos do romance.

O autor aproveita o enredo para fazer uma síntese histórica da evolução do nordeste brasileiro mostrando a lenta decadência dos engenhos, engolidos lentamente pela modernidade das usinas de açúcar, a paulatina introdução das ideias de luta de classes trazidas pelos sindicatos trabalhistas, o surgimento das Ligas Camponesas e a consequente agitação social e política da época e a situação de abandono social em que o nordeste é deixado pelas autoridades políticas. Como em outros romances, o autor utiliza o narrador para demonstrar, com uma visão crítica, sua amargura em relação aos homens, à política, aos caminhos do país; e, mesmo assim, revela sua admiração e esperança no grande país que é o Brasil.

Entretanto, alguns problemas de edição merecem ser apontados:
- Na página 81, há referência a “desgraça de 1977” e na página 89 há referência a “estiagem de 1977”, que na verdade o autor se refere à ESTIAGEM DE 1877, conforme consta do elucidário de verbetes do romance São Chico como “seca de 77”, à pagina 420. Mesmo porque não faz sentido a data de 1977, uma vez que o autor faleceu oito anos antes, em 1969, na cidade de Belo Horizonte.
- Outro problema de referência está na página 373, em que a indicação do ano de 1889 surge como se fosse 1789, marco da Revolução Francesa.
- Aparentemente, o que pode ter acontecido é que houve erro de digitação e o responsável pela revisão não percebeu o erro.
- Finalmente, não há referência, nem mesmo na ficha catalográfica, ao autor da capa do livro.

Creio que estas são observações importantes, pois a obra de Agripa tem uma grande dimensão na literatura brasileira, o que exige um tratamento editorial com todo o rigor profissional possível.

domingo, 29 de julho de 2012

Minha última religião

      O ano, 1988. Então socialista convicto, era candidato a vereador pelo PT em Matozinhos numa chapa de oito companheiros, mais prefeito e vice. Campanha pobre, sem dinheiro, íamos rompendo através de favores de amigos e simpatizantes. Certa tarde, alguém do comando decidiu que tínhamos que fazer um comício relâmpago para chamar a atenção para nossos candidatos. E, assim de supetão, resolveu-se que naquela noite faríamos o comício, mesmo sem anunciar. Sô Divino emprestaria o equipamento de som e o caminhãozinho, que também seria o palanque. O bairro escolhido foi o Cruzeiro e o horário às vinte horas. Cada candidato deveria levar mais gente para aumentar o grupo. Eu estava nervoso, seria a primeira vez que falaria em comício público. Cheguei no horário e local combinado, com Lés-sandar, minha mulher, e a turma já estava toda lá. Escolheram uma esquina em que havia um poste de luz iluminando mal e porcamente meio quarteirão; na plateia, além dos oito candidatos e “convidados”, havia um bêbado encostado no poste, um cachorro viralata sentado ao lado e dois transeuntes distraídos, que também não faziam a menor ideia sobre o que estava acontecendo. Enfim, subia no palanque (caminhão) um candidato de cada vez (os outros ficavam na rua pra não desfalcar a multidão...) e fazia seu discurso. Nosso candidato a prefeito tecia loas a JK, o ex-presidente, do antigo PSD, partido dos coronéis, sem perceber nenhuma contradição. Quando fui chamado ao palanque, subi nervoso e sapequei um discurso rápido (talvez uns dois ou três minutos) apontando princípios e propostas petitas, como transparência, justiça social, orçamento participativo e blá-blá-blá-blá-blá... terminei acelerado e, aliviado, desci do caminhão. Procurei Lés-sandar, que assistia a tudo, e perguntei ansioso: “como é que eu fui?”. Ela me olhou nos olhos, depois correu a vista na multidão dos oito ou dez assistentes (nós mesmos), além do bêbado e do cachorro, voltou-se pra mim e, sem dizer nada, deu uma gargalhada tão sincera que me contagiou, fazendo-me perceber instantaneamente o ridículo daquela situação. E rimos juntos, sem que o resto da turma entendesse o que estava se passando.

      Independente das muitas situações ridículas, cômicas ou constrangedoras pelas quais passamos em nossa militância política, ingenuamente ou não cumprimos nosso papel na construção do projeto petista, até culminar com a eleição de Lula a presidente. No dia da posse, estávamos em Brasília comemorando nossa maior conquista. Orgulhosos, emocionados e cheios de esperança, aguardávamos as prometidas transformações anunciadas nos programas. Entretanto, fomos presenteados com o episódio do “mensalão”, que foi uma punhalada nas costas da militância... e o “companheiro” Lula ainda teve a coragem de dizer que não sabia de nada. Passada uma raiva inicial, vislumbrei o que acontecia de fato: o PT perdeu o “salto alto” de dono da verdade e caiu na vala comum dos partidos, o novo modelo hegemônico revelou seus mocinhos e seus bandidos, como acontece em todo partido político. Com isso, percebi a dose de ingenuidade com que havia mergulhado naquela aventura e senti, pelo quadro atual, que já não tinha muito mais compromisso com aquele projeto. Fui afastando-me aos poucos...
      Minha geração, e as que a antecederam, se comprometeram na luta social acreditando em utopias, em Sierras Maestras e nas barricadas do Quartier Latin no maio de 68; para elas, a cor vermelha trazia um sentido ideológico; gerações estas forjadas em leituras quase obrigatórias como “História da Riqueza do Homem” e “As Veias Abertas da América Latina”; cerramos fileiras nas lutas contra a ditadura militar em movimentos como o das “Diretas Já”. Éramos capazes de nos indignarmos. Atualmente as lideranças são formadas a partir de manuais de autoajuda, em que se propala a felicidade individual em detrimento de qualquer sonho coletivo.

     Volto rapidamente ao passado. Lés-Sandar, assistindo a mais um comício nosso em praça pública, me chama a atenção: “vocês estão parecendo um bando de crentes pregando na rua aos irmãos, meia dúzia de doidos e um tal de companheiro pra cá, companheira pra lá etc. etc. etc... só tá faltando o amém Jesus no final.” Fiquei meio sem graça, mas tive de concordar. Algo realmente se quebrava. Já há muito afastado das teologias, ia-me agora distanciando também das ideologias. The dream is over, disse John sabiamente. Penso que também fechei este capítulo.