Necessários no sentido de riscar, traçar linhas que podem ser desenhos ou letras compondo uma ideia... ou mesmo os riscos que somos levados a correr durante a vida... Tanto os riscos/traços/letras quanto os riscos/viver/arriscar são necessários para a sobrevivência dos nossos sonhos, nosso ego, e até mesmos dos nossos fantasmas...


terça-feira, 11 de março de 2014

Histórias da República

Creio que já disse que não sou bom memorialista. Falta-me exatamente a precisa lembrança dos fatos e principalmente seus rigorosos detalhes. Sempre me ative mais ao geral e menos ao particular. Mesmo assim, às vezes arrisco-me reportar algumas passagens, principalmente as divertidas, que vira e mexe me vêm à recordação. Um desses episódios ocorreu no distante ano de 1970.
Aos dezoito anos, após terminar o curso científico, fui pra BH estudar Belas Artes, na Escola Guignard, e fazia o cursinho pré-vestibular Pitágoras à noite. Financiado pelo meu irmão Noca (Zé Zwinglio), fui morar em uma “república de estudantes” na rua Araxá, no alto do Colégio Batista, no bairro Floresta. Era um apartamento que pertencia aos irmãos Márcio (Bebê) e Marcelo Alves, ambos também de Matozinhos. Bebê era funcionário do Consulado Português em BH e Marcelo trabalhava numa agência do antigo Bemge na capital mineira. A república funcionava como uma espécie de “embaixada de Matozinhos e região” e era estratégica, pois ficava em um bairro muito próximo ao centro da cidade, permitindo uma bela economia, na medida em que fizéssemos o trajeto ao centro da cidade a pé. Afinal, estudante sempre foi “quebrado”... Além dos irmãos proprietários do imóvel, morávamos lá eu, Noca (Zé Zwinglio) meu irmão, que estudava engenharia civil e dava aulas de matemática em Vespasiano; Rubinho (hoje, Dr. Rubens Oliveira) fazia o curso de medicina; Romeusinho, filho de Romeu do Cinema, estudava engenharia elétrica; Laerte Benedito, mais conhecido como “Dito de Laerte”, também era aluno da engenharia, prematuramente falecido. Eventualmente, eu diria raramente, apareciam ainda o Fraga, de Capim Branco, estudante de medicina, e o Zé do Prado, de Mocambeiro, da turma da engenharia. A gente mal se via, cada um tinha seus compromissos e seus horários diferenciados.
Minha rotina era: de manhã na escola de Belas Artes, de tarde na república e à noite no cursinho. Certa tarde, logo após o almoço, me aparece no apartamento, esbaforido e todo apressado, o Beto, irmão de Cristiano Gomes, colega no científico e estudante de Belas Artes na Federal. Nessa época, ele ainda morava em Matozinhos e viajava todo dia pra estudar em BH. Chegou ofegante e foi logo dizendo: “se arruma rápido que eu descobri um filmão pra gente ver agora de tarde, lá no centro da cidade!” Eu disse: “calma, Beto, tem tempo... eu ainda vou lavar as panelas do almoço, que hoje essa tarefa sobrou pra mim...”. E ele: “tá bão, eu te ajudo na cozinha, pra gente andar mais depressa, senão vamos perder essa chance.” Daí que eu perguntei: “mas que filme é esse, afinal de contas?” Ele olhou desconfiado para um lado e para o outro, franziu as sobrancelhas, baixou o tom de voz e falou em suspense: “é um filme erótico, mas não é qualquer um, não! É uma produção internacional em cinemascope, colorido, acho até que é filme sueco”... “Uau – eu falei – então vamos acelerar!”.
Entretanto, cabe aqui uma explicação, ou melhor, uma contextualização: falar em licenciosidades naqueles tempos era algo que só devia ser feito às escondidas, nas sombras. Imagine os anos 1970, com toda a censura e a moral ultraconservadora da ditadura militar definindo o que podia e o que não podia ser feito, ouvido, lido ou visto. De outro lado, pense em dois adolescentes recém-chegados do interior e loucos para conhecer e conquistar os “segredos e prazeres” da grande cidade... E não havia material de conteúdo lascivo ou libidinoso, impresso ou em filme, disponível em quase nenhum lugar público (livrarias, bancas, cinemas etc.), era preciso conhecer algum “fornecedor” de confiança... Hoje, num tablet ou qualquer smartphone, basta apertar uma tecla e você consegue o que quiser. Não tem nem graça, mas naqueles tempos...
Portanto, era uma oportunidade imperdível. Apressamos a arrumação da cozinha e desabalamos rua Araxá acima até o ponto de ônibus da rua Ponte Nova. Entramos no primeiro lotação do Colégio Batista e descemos até o centro. O cinema era na rua Guajajaras, continuação da avenida Carandaí, quase esquina com a Afonso Pena, e a sessão começaria às 14 horas. Chegamos quase em cima da hora, corremos à bilheteria, compramos os ingressos e, ato contínuo, entramos na sala de projeção. As luzes ainda estavam acesas, pessoas entrando e ocupando seus lugares, nós escolhemos dois assentos em posição estratégica, bem no centro da sala diante daquele imenso telão. Ficamos aguardando até que a iluminação interna começou a ser desligada, a musiquinha de fundo silenciou e o suspense foi aumentando. Nós olhávamos o público cada vez maior e a tensão crescia. De repente, algo começou a ficar meio estranho. Cutuquei o Beto e mostrei pra ele que, em fileiras mais atrás na sala, acabavam de chegar duas senhoras bem aparentadas e “razoavelmente” idosas. Nos olhamos e ele disse: “safadeza não tem idade, uai”. Rimos e a luz apagou. Com a sala totalmente escura, foi iniciada a projeção; após os anúncios comerciais, traillers de filmes etc., uma cena inusitada surge no telão: uma lenta e sensual cópula entre um casal de leões em plena savana africana. E, sobre aquele espetáculo “erótico”, desenrolou-se uma lista de nomes de especialistas em educação sexual, recheada de doutores em tais e quais especialidades médicas etc.
Olhei pra cara do Beto, que quase arrebentou em uma risada, mas se conteve. Fomos saindo meio de esgueira, pedindo licença aos cinéfilos da educação sexual e escapulimos sorrateiramente até a porta de saída. Lá fora, na rua, não teve jeito, explodimos em gargalhadas, de tal modo que os transeuntes deviam estar se perguntando que boa piada teríamos ouvido.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Como disse o Ziraldo: “E NO RIRÓ”?

Devo admitir que ultimamente andei meio ranzinza nos textos deste blog. Falei dos riscos de desaparecimento de nosso patrimônio arqueológico e paleontológico; denunciei a falta de educação e a agressividade gratuita de muitos internautas em suas conversas online, enfim, fiquei sério demais. Mas, faço aqui minha mea culpa. E vou relaxar um pouco, tratando hoje de um tema bem mais leve.
Consultando velhos alfarrábios, deparei com um recorte de jornal interessante: uma nota no lendário “O Pasquim”, edição no 123, de novembro de 1971, que falava de um tal “Dicionário da Língua Familiar – ou Grupal – Brasileira” que o cartunista Ziraldo estava tentando organizar a partir de contribuições dos leitores. E eu, na época com 19 anos, enviei ao Pasquim uma expressão divertida e muito usada aqui em Matozinhos e em Capim Branco, município pertinho daqui, onde ela nasceu: “e no riró?”. No texto eu expliquei como surgiu a expressão e as variações que apareceram em seguida. Abaixo, reproduzo parte da nota com a explicação:
“Diz o Zé que a palavra já é de uso corrente em sua cidade e em Capim Branco, lá por perto, onde a palavra nasceu. Diz que tava um jogo de futebol muito quente e resolveram tirar um jogador do time pro dono do time entrar no lugar dele.

Ninguém topou sair. O último e mais fraquinho, tava ali, num canto, doido pra ninguém notar ele, quando o técnico falou: ‘Sai você!’
E ele respondeu: ‘Ah, é. E no RIRÓ, não vai nada?’
Ninguém entendeu, mas ele não saiu.
Hoje, a palavra já está cheia de corruptelas pela região: ariró, orirol; riras, rirostática (ciência que es­tuda os movimentos do RIRÓ), riro­logia, etc.
Só tem um detalhe: riró se pro­nuncia com o primeiro R tendo o som que os R têm, quando estão en­tre vogais. A gente tem que dar uma enroladinha na língua antes de co­meçar a pronunciar a palavra. Não tem jeito de escrever a palavra em português com seu som exato, a não ser que você faça este aviso antes. É um riró pra conferir. - (Ziraldo)”
E o que não faltava naqueles tempos era gente pra divulgar a expressão; pra todo lado se ouvia o “clássico” E NO RIRÓ?.
Alguns anos depois, surgiu em Belo Horizonte na extinta TV Itacolomi um programa de auditório chamado “Mineiros Frente a Frente”, onde eram confrontadas equipes representantes das cidades mineiras, que cumpriam tarefas de toda ordem para angariar pontos e vencer o certame. As tarefas variavam desde um concurso da representante mais bonita da cidade a curiosidades locais, passando por apresentações de dança etc. O programa era transmitido pela TV para toda Minas Gerais. As disputas aconteciam nos fins de semana e eram eliminatórias, cada cidade que vencia uma etapa se classificava para a seguinte, a que perdia voltava pra casa. Era o típico campeonato mata-mata.
 Matozinhos ficou famoso com o grupo folclórico português que Cristiano Gomes ensaiava com crianças e adolescentes (essas “crianças” devem estar hoje com seus cinquenta anos, mais ou menos...). O grupo folclórico era uma espécie de tira-teima. Quer dizer, se a disputa tava apertada, era só chamar Cristiano com os meninos do folclore que ele resolvia a parada a nosso favor. E não havia quem resistisse ao talento daquela turma. Matozinhos ia rompendo na competição, derrubando adversários pequenos e grandes, até que um dia foi anunciado que enfrentaríamos a cidade de Caratinga, que tinha entre seus representantes famosos ninguém menos que o cartunista Ziraldo.
No dia da disputa, a delegação de Matozinhos seguiu para Beagá em vários ônibus, que levavam além dos participantes do programa uma grande torcida organizada. Chegando ao edifício do auditório, as delegações praticamente se encontram, o clima é de tensão total. João Alves, presente no evento, é que me contou sobre o episódio: as turmas de Matozinhos e Caratinga, cara a cara, todo mundo nervoso com a expectativa. De repente, no meio daquela profusão de gente, aparece o Ziraldo com um enorme sorriso no rosto e saúda a nossa delegação com um sonoro e retumbante “Eh, Matozinhos, E NO RIRÓ?”. Era a senha para desarmar os espíritos. A partir daí, houve a maior confraternização entre todos, era como se os competidores das duas cidades fossem velhos amigos.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A pré-história de Minas Gerais pode diluir-se na fumaça de uma chaminé


Reiteradamente volto ao tema do nosso patrimônio cultural. Sei que não sou uma voz isolada, mas aproveito o blog para ampliar o espaço de discussão deste assunto. Na edição do bimestre novembro-dezembro de 2004 do extinto jornal impresso “Ecos”, publiquei uma matéria sobre o livro “O patrimônio arqueológico da região de Matozinhos – CONHECER PARA PROTEGER, de autoria da arqueóloga e historiadora Alenice Baeta em parceria com o professor André Prous, do Departamento de Sociologia e Antropologia da FAFICH-UFMG, com fotografias de Ézio Rubbioli, espeleólogo do Grupo Bambuí de Pesquisas Espeleológicas. Sob o título “Um tesouro escondido”, o texto explicava o conteúdo da publicação: uma síntese das pesquisas arqueológicas da região calcária de Lagoa Santa, de Lund a Walter Neves, passando entre outros por Annette Laming-Emperaire, numa linguagem simples e didática, esclarecendo e informando sobre um assunto ainda pouco valorizado pelos órgãos de planejamento do município e praticamente desconhecido do grande público. Enfim, são 132 páginas de uma obra-prima editorial, com cuidadoso projeto gráfico, belas fotografias e excelentes ilustrações, que deveria ser um dos livros de cabeceira de quem se interessa pelo tema.
Além deste, há outros que poderão ajudar a compreender o grande valor da região de Matozinhos para a arqueologia, a paleontologia e a antropologia brasileira e mundial, e a entender a necessidade de proteção e preservação das nossas cavernas e sítios arqueológicos. De fácil leitura, cito estes dois: “Lapa das Boleiras – Um Sítio Paleoíndio do Carste de Lagoa Santa, MG, Brasil, de Astolfo Araújo e Walter Neves; e “O Povo de Luzia – em busca dos primeiros americanos, dos professores e pesquisadores Walter Alves Neves e Luís Beethoven Piló. Quem ainda não leu estes livros, creio que poderá encontrá-los para empréstimo na Biblioteca Pública Municipal Professor João Batista Teixeira, no Palácio da Cultura, em Matozinhos.
Voltando um pouco no tempo, ex-alunos do Colégio Bento Gonçalves, eu e João Pezzini realizamos naquela instituição uma exposição sob o título “As Grutas de Matozinhos – importância e preservação. A data: outubro de 1980, portanto há 33 anos. Num tempo em que a palavra ecologia soava como neologismo e quase ninguém conhecia seu significado, já estávamos discutindo e tornando públicas nossas preocupações com este acervo cultural do município. Além de fotos impressas, ilustrações e quadros explicativos, fizemos a montagem do que à época era chamado de “audiovisual”, ou seja, uma coleção de slides projetados numa determinada sequência acompanhados de sonorização com músicas e textos. Hoje isso poderia ser feito em poucas horas com um powerpoint em qualquer computadorzinho, entretanto, naqueles anos, esse processo era caro, exigia equipamentos sofisticados e laboratórios de imagem e som. Mas, demos nosso recado. O “audiovisual” apresentava fotos dos sítios arqueológicos e seus paineis rupestres com grande preocupação didática e estética, ao mesmo tempo em que pontuava as chaminés de indústrias que calcinavam as pedreiras, numa óbvia alusão ao risco de desaparecimento que aqueles bens patrimoniais corriam. Ao final, o último slide projetava uma sentença, “desenhada” na face de uma pedra qual uma pintura rupestre, que afirmava: “A pré-história de Minas Gerais pode diluir-se na fumaça de uma chaminé”.
Mesmo se retirarmos o tom dramático da frase, ela ainda continuará sendo válida, o risco ainda pode existir, razão pela qual insistimos na necessidade de aumentarmos o número e o universo de interlocutores. Assim, creio que se deveria dar mais publicidade ao projeto “Terra de Luzia”, do Colégio Bento Gonçalves, ampliar suas informações para além do âmbito exclusivamente escolar, buscando atingir de forma didática toda a comunidade. Também acho interessante socializar, através dos meios de comunicação, as ações e propósitos do Ecomuseu do Carste, para que toda a sociedade o conheça, acompanhe e legitime seu trabalho. Ao mesmo tempo, o poder público municipal, legislativo, judiciário e executivo, através de suas autoridades, precisa ter ciência do potencial de desenvolvimento deste setor, principalmente com as oportunidades que se anunciam como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, e somar esforços no sentido de pressionar o governo estadual na implantação do Parque Estadual de Cerca Grande.
Este é um passo fundamental para que Matozinhos faça parte da chamada “Rota Lund”, programa turístico mineiro dentro do Circuito das Grutas, e possa garantir a preservação daquele sítio arqueológico, além de promover o desenvolvimento turístico municipal de forma sustentável.
A propósito de sítios arqueológicos, João Pezzini me falou a respeito de um projeto de pesquisa arqueológica nas ruínas da fazenda Bom Jardim, que pertenceu à sua família e hoje é propriedade da Lafarge. Mas, este assunto fica para uma próxima postagem.