Necessários no sentido de riscar, traçar linhas que podem ser desenhos ou letras compondo uma ideia... ou mesmo os riscos que somos levados a correr durante a vida... Tanto os riscos/traços/letras quanto os riscos/viver/arriscar são necessários para a sobrevivência dos nossos sonhos, nosso ego, e até mesmos dos nossos fantasmas...


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A propósito de “uma noite em 67”


Recentemente, recebi de um amigo um e-mail recomendando assistir ao documentário “Uma Noite em 67”, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil no ano de 2010. A partir de imagens de arquivo da Rede Record e depoimentos de alguns participantes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros mais, o filme apresenta a final do “3º Festival da Música Popular Brasileira”, era a noite de 21 de outubro de 1967 (coincidentemente, estou escrevendo este comentário em 21 de outubro de 2013, exatos 46 anos após).
Este festival ficou famoso principalmente pelo aparecimento em cena da Tropicália, capitaneada por Caetano e Gil que criaram um contraponto radical apresentando-se acompanhados por bandas de rock (Os Mutantes) e toda sua parafernália eletrônica. Isto era uma heresia, pois aquele se tratava de um festival de MPB. Episódio também famoso foi protagonizado por Sérgio Ricardo, que quebrou uma viola no palco e a arremessou para a platéia quando foi vaiado durante a (tentativa de) apresentação da sua música “Beto Bom de Bola”.

 
Vencido por Edu Lobo, que interpretou a canção “Ponteio” com a cantora Marília Medalha, este Festival foi um marco importante na música brasileira, quando despontaram nomes que se tornaram grandes ídolos musicais até hoje, e ocorreu em um tempo de ditadura militar e radicalismos maniqueístas de toda ordem. Vale a pena acessar o documentário no YouTube e rever (para quem for da minha geração e acompanhou ao vivo) ou conhecer as cenas, algumas até muito curiosas de bastidores e suas entrevistas.
Feito o convite, vamos ao segundo ponto. Após asssistir ao filme, tive a curiosidade de ler alguns comentários no site do YouTube. Aí começou minha indignação, pois a gente constata imediatamente, e mais uma vez, a grande banalização da violência. Na rua, a facilidade com que se mata, e pelos motivos mais fúteis, é veiculada toda noite nos jornais da TV, mas a gente sempre tem a esperança de que em um espaço para reflexão intelectual (pelo menos espera-se que este seja – um documentário cultural veiculado no YouTube), a argumentação tenha bases bem fundadas e a linguagem seja, no mínimo, respeitosa, visto que nem sempre se conhece as pessoas com quem dialogamos online. Triste e ingênua esperança. Sem querer aprofundar, reproduzo dois rápidos exemplos (partes do texto) dessa agressividade gratuita e argumentação puramente emocional; também omito os nomes dos autores, mesmo porque um deles utiliza pseudônimo e outro usa o desenho de focinho de um animal no lugar da foto de seu rosto.
O primeiro se expressa assim: “Q BOM PRA VC Q GOSTA DE TUDO, PRA MIM ISSO SE CHAMA FALTA DE PERSONALIDADE, TODOS TEM O DIREITO SIM DE GOSTAR ´´A´´ E NAO GOSTAR DE ´´B´´ E SE MANIFESTAR. MINHA CRITICA NAO FOI PARA QUEM OUVI OU ASSISTI OU LE, CADA UM ALIMENTA SEU CEREBRO COMO QUISER, MINHA CRITICA FOI EM CIMA DE FATOS Q ´´EU´´ VEJO, ESCUTO E ASSISTO, E VEJO Q HOJE O Q E ´´BOM´´ E FUTIL, VAZIO, VULGAR E DESCARTAVEL. AO CONTRARIO DE VC, EU NAO SOU UFANISTA E NAO GOSTO DESTA MAIORIA DE LIXO FABRICADO PELA MIDIA PRA VENDER!!!” (sic). Uma verborragia apressada e em letras maiúsculas (imagino que assim ele pensa que vai assustar alguém ou parecer que está gritando), com abreviações do “internetês” que, no final, mascaram um texto arrogante, pois faz afirmações sem um bom arrazoado, e é nitidamente mal escrito.
Mais adiante, um outro internauta explode imprecações de uma agressividade como ainda não tinha visto neste espaço cibernético: “...além do mais o compromisso do artista é com seu público e não com ideologias vagabundas de terceiro mundo. Além de tudo tú é burro. Pra eu descer a lenha em imbecís como vc eu não preciso elogiar. È só descer. Pra mim quem admira CANALHAS, CANALHA É!!” (sic). Este dispensa comentários...
E não precisamos ir muito longe para encontrar a dupla agressividade gratuita e argumentação emocional. O tão e quase sempre simpático facebook está recheado de exemplos de pessoas (algumas até conhecidas) que exprimem suas opiniões de forma não muito elogiosa quando se referem principalmente aos representantes do povo estabelecidos no executivo ou no legislativo. Parece que com o judiciário há um certo respeito (ou temor mesmo). Outro dia, li no facebook o comentário de um morador da nossa cidade referindo-se aos funcionários da prefeitura de Matozinhos como os “muares”. Não conheço o cidadão, não sei de suas façanhas e valentias, mas fiquei pensando se, cara a cara, ele seria tão “criativo” e corajoso. Vai que seu desafeto seja mais pesado que ele e não goste de levar desaforo pra casa... Aí, há o risco de o ofendido sapecar-lhe um belo e sonoro sopapo ao pé do ouvido. Nesse momento, nenhum facebook, youtube, google, orkut, gmail ou coisa do gênero vai protegê-lo.
Infelizmente, há muitas pessoas que ainda se escondem sob pseudônimos ou mascaram seus rostos em caricaturas para se sentirem livres e protegidas para desancar seus adversários, inimigos ou quem quer seja, sem o risco de serem também agredidos. A esta atitude dá-se o nome de covardia. E o curioso é que este fenômeno é bem uma característica do momento que vivemos, propiciado pelo avanço tecnológico, pela democratização do ciberespaço, pela ampliação das redes sociais. E as redes sociais são de todos, inclusive dos covardes.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Jubileu do Bom Jesus, nossa festa maior


Não posso dizer que sou um tradicional frequentador da festa do Jubileu, mesmo porque multidões não me agradam muito, principalmente agora que já passei dos sessenta anos. Mas, por várias oportunidades participei de equipes de trabalho que organizaram e coordenaram essa festa, que é a mais importante no calendário do município. Alguma coisa a respeito eu conheço razoavelmente.
O Jubileu do Senhor Bom Jesus é a expressão maior da nossa identidade cultural, o mais fidedigno traço de nossas origens portuguesas, essa brava gente que aqui chegou em busca da riqueza do ouro, trazendo em seus alforges muita coragem, esperança e acima de tudo uma fé inquebrantável no Senhor de Matosinhos. E assim, trouxeram também a festa do Jubileu, com sua base religiosa, mas com seus aspectos profanos, que acontecem em todas as festas de Jubileu que se tem notícia. Assim ela é há duzentos anos, creio que assim sempre será.
A festa em Portugal, onde surgiu a lenda do Senhor de Matosinhos, ocorre no mês de maio e “é, há já muitos séculos, indiscutivelmente uma das maiores e mais importantes manifestações da cultura popular do EntreDouroeMinho. Uma das mais famosas e concorridas romarias do Norte de Portugal: as festas do Senhor de Matosinhos, que agora se iniciam, e que, nos nossos dias, fazem passar pela Festa perto de um milhão de pessoas. Tratase de um grande acontecimento sacro mas, igualmente, de inegável impacto profano, com uma programação alicerçada em fortíssimos apelos lúdicos, culturais, gastronômicos e comerciais” (documento de apresentação da imagem do Bom Jesus, restaurada em 2012).



Por todos os anos que presenciei (e participei) da festa e de sua organização, vale o dito popular que sentencia: “de boa intenção o inferno está cheio”. E não estou criticando nenhum aspecto específico do evento neste ano, pois, apesar de morar no “olho do furacão”, não vi nenhum problema que em outros anos não tenha acontecido, algumas coisas até merecem elogios. A questão básica é que não se leva o Jubileu a sério, não há planejamento de longo prazo, não há profissionalização do evento. Há muito tempo, as várias administrações não dão a mínima importância ao setor de turismo municipal; na verdade, quase ninguém acredita em turismo aqui em Matozinhos. Ou seja, entra ano, sai ano e, infelizmente, continuamos improvisando amadoristicamente o que poderia ser a festa cartão-postal da nossa cidade.



A importância do Jubileu no âmbito da cultura popular é reconhecido oficialmente pelo seu registro como Patrimônio de Natureza Imaterial, indicado no Inventário de Proteção do Acervo Cultural – IPAC do município. Este documento caracteriza-o como “a festa mais tradicional e mais representativa do município”. Em outras palavras, a comunidade, através do seu Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, reconhece o Jubileu como um dos seus maiores patrimônios imateriais, e este é o primeiro passo para seu “tombamento”. Falta esse reconhecimento por parte das administrações municipais. E constituirá um marco histórico a administração que, de fato, ousar investir de verdade e dar tratamento profissional ao nosso maior evento religioso e cultural.



E para quem ainda não conhece, a seguir reporto a lenda que deu origem a tudo isso.

A lenda do Senhor de Matosinhos
Nicodemos, fariseu convertido, testemunha do drama do Calvário e que juntamente com José de Arimateia despregou o corpo de Cristo da cruz, teria esculpido diversas imagens do Cristo Crucificado, impressionado com os acontecimentos que presenciou. E, por causa das perseguições dos judeus e romanos, o próprio escultor lançou as imagens ao mar, na Palestina, para salvá-las da profanação. Assim, ao sabor das correntes marítimas, uma delas atravessa todo o Mediterrâneo e chega ao oceano Atlântico, indo dar à costa norte de Portugal, na praia do Espinheiro, hoje praia de Matosinhos. Era o dia 03 de maio do ano 124, segundo século de nossa era, domingo do Espírito Santo ou de Pentecostes.
Recolhida a imagem pela população, constatou-se a ausência de um dos braços. Foi levada então para o Mosteiro de Bouças, e realizadas inúmeras tentativas para substituição do membro perdido, mas sem lograr êxito. Cinquenta anos depois, no ano de 174, nesta mesma região uma mulher que procurava lenha encontra uma peça de madeira e a leva para casa. Ao tentar queimá-la, a peça se afastava do fogo reiteradas vezes, até que a filha desta senhora lhe diz: “esta madeira é o braço que falta à imagem do Senhor Bom Jesus de Bouças”. O detalhe é que a filha era, até então, muda. Assim, o braço foi levado ao convento de Bouças e reintegrado com perfeição à escultura original do Cristo, e a notícia daquele primeiro milagre se espalhou, inicialmente em Portugal, e posteriormente por toda a península ibérica. É desde este milagre que data a grande romaria ao Espírito Santo de Matosinhos.
Inicialmente guardada no Mosteiro de Bouças, a imagem foi transferida no século XVI para a igreja de Matosinhos e é considerada a mais antiga imagem, em tamanho natural, do Cristo Crucificado existente em Portugal. Esta fama cruzou o Atlântico e deu origem no Brasil a mais de 30 igrejas dedicadas ao Senhor de Matosinhos. Edgard de Cerqueira Falcão, em A Basílica Senhor Bom Jesus de Congonhas do Campo (Brasiliensia Documenta, 1962), fala dos imigrantes que vieram para o Brasil durante o século XVIII com vistas nos garimpos de ouro das Gerais e da fé que os acompanhava: Por tal forma, implantou-se entre as alterosas montanhas da Serra do Espinhaço e adjacências, ardente culto ao Bom Jesus de Matosinhos, glorioso patrono, sobretudo, das populações setentrionais da metrópole lusa." Dessa forma, nossa cidade recebeu a autorização episcopal, em 30 de maio de 1774, para a construção da capela, que foi erguida por Inácio Pires de Miranda, filial da Matriz de Roça Grande (Sabará). Em 1920, o templo primitivo foi demolido e, em 1921, iniciou-se a construção da atual igreja Matriz do Senhor Bom Jesus de Matozinhos.

sábado, 14 de setembro de 2013

Melancólico aniversário


Já passava do meio-dia quando resolvi sair de casa para ver como estavam as comemorações na cidade. Afinal, 190 anos de história não são pouca coisa, não. Creio que merecíamos um grande abraço cidadão pelo aniversário da nossa urbe.

Aliás, Matozinhos talvez seja uma das poucas cidades do planeta com duas datas comemorativas de seu nascimento. Vinte e três de agosto e primeiro de janeiro. Mas, não é bem assim. Nossos mestres nos ensinaram que na data de 23 de agosto comemoramos a elevação de povoado a “freguesia”, termo que correspondia à condição do que hoje conhecemos como distrito. Então, aquele povoado que venerava o Senhor Bom Jesus passou a ser a “Freguesia do Senhor Bom Jesus de Matosinhos”, pertencente à fidelíssima Vila de Nossa Senhora do Carmo de Sabará. Já em 1º de janeiro, comemoramos a instalação do município, ou seja, sua independência política e administrativa, fato que se deu em 1944, definido por um decreto assinado pelo governador Benedito Valadares em 31 de dezembro de 1943. Eu disse “comemoramos”, mas na verdade não me lembro de nenhuma festa cívica ocorrida em “primeiros de janeiro”, talvez até pela ressaca do ano novo... Mas, tenho que dar um desconto também, pois minha memória é sofrível.

Em razão disso, faço sempre minhas reverências aos guardiões de nossa memória histórica. Lembro com muito carinho de Conceição Vieira, que não está mais entre nós, mas que foi companheira incansável no Conselho Municipal do Patrimônio Cultural e possuía importante acervo sobre nossa cidade. Antonio Vasconcelos e Cristiano Gomes são referências municipais no quesito histórias da terra, pois além de contribuírem constantemente em várias mídias locais com seus conhecimentos, são convidados pelas escolas para palestras, e ambos já têm publicações sobre o assunto. Também gosto muito de conversar sobre esses temas com Gonçalo Amarante e Fio de Colô, que contam suas lembranças de forma afiada e divertida. Mas, por que falo destas pessoas? Simplesmente porque suas reminiscências contam fatos de uma outra Matozinhos, bem diferente da de hoje. Não sou do tipo saudosista, que acredita que antigamente tudo era melhor. Mas entendo a necessidade de se conhecer o passado para se projetar o futuro. E é exatamente o futuro de nossa cidade que não me parece muito promissor...

Só como exemplo, outro dia abri as páginas de um jornal local e li sobre um bate-boca entre dois vereadores acerca do projeto de expansão do perímetro urbano na região do Cafezal. Parece brincadeira, mas estão desenterrando um projeto absurdo derrotado na gestão passada, que é estender o espaço urbano até a área rural chamada Cafezal. Se alguém procurou se informar, sabe que só o parcelamento daquela área em sítios já está comprometendo o aquífero local, imagina o que sobrevirá com a aprovação deste projeto infeliz. Além do mais, há nesta mesma matéria uma menção à possibilidade de construção de casas “germinadas” (sic), que explica o que está por trás do projeto: o puro interesse imobiliário, que se mostra ganancioso quando investe em ideias deste tipo. Casas geminadas são aquelas construções com paredes-meias, e só se justificam quando não há espaço disponível, o que definitivamente não é o caso daqui de Matozinhos. Isso não existe, é um retrocesso histórico absurdo. O que se vai criar são péssimas condições sociais para as famílias que irão morar neste lugar. Só que o material de propaganda vai vender o paraíso, né?! Parece que virou moda: com casas geminadas, o número de unidades se multiplica, a imobiliária se entope de ganhar dinheiro, a construtora “lava a égua” também e a família moradora que se dane.

Não faz muito tempo, voltando do bairro Cruzeiro, parei na rua Alvorada e, lá de cima, olhei para um conjunto que está sendo construído às margens da Avenida André Favalleli, no bairro da Estação. Tive a nítida impressão de que olhava para algum assentamento palestino na Cisjordânia. De longe, quase acreditei que eram casas geminadas... E aí, não tem desculpa: quem aprova esse tipo de projeto é o poder público, legislativo e executivo. São, sim, responsáveis pelas consequências futuras. E não precisamos ir longe. Será que quando foi aprovada a implantação de loteamentos urbanos na área do Carste aqui em Matozinhos, os gestores municipais da época não imaginavam que, com o adensamento populacional, haveria risco de contaminação do lençol freático de toda a região e possíveis entupimentos de dolinas, com suas desastrosas consequências ecológicas? Pois já estão acontecendo.
 
Mas, chega de falar de coisas sombrias. Voltemos ao aniversário da nossa cidade e ao meu passeio em busca de comemorações. Pois bem, quase não havia gente na rua; era uma sexta-feira, mas parecia um domingo em fim de tarde; aquela impressão de ressaca coletiva, de perder a final de uma Copa do Mundo. Me senti um pouco estrangeiro em minha própria terra natal. Aí, percebi que realmente não havia muito a comemorar.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Sobre deuses, pássaros e gaiolas

Não me lembro exatamente onde e quando entrei em contato com este texto do Rubem Alves, mas não esqueço minha estupefação, meu fascínio. Eu o releio frequentemente. Fala do mistério que é Deus e de como as religiões querem se apropriar Dele para exercerem a manipulação da consciência, ingenuidade e esperança dos homens. O texto é de um filósofo, mas um filósofo poeta, acima de tudo poeta. Texto limpo, claro, emocionante. O texto que eu gostaria de ter escrito.
Por isto, resolvi partilhá-lo. Antes, um pouco da vida de Rubem Alves e, a seguir, seu texto Sobre deuses, pássaros e gaiolas, do livro O mundo num grão de areia.
 
Rubem Alves
 
 
 
Nasceu no dia 15 de setembro de 1933, em Boa Esperança, sul de Minas Gerais.
Psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis.
É Bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, Mestre em Teologia e Doutor em Filosofia (Ph.D.) pelo Seminário Teológico de Princeton (EUA). Lecionou no Instituto Presbiteriano Gammon, na cidade de Lavras, Minas Gerais, no Seminário Presbiteriano de Campinas, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro e na UNICAMP, onde recebeu o título de Professor Emérito. Tem um grande número de publicações, tais como crônicas, ensaios e contos, além de ser ele mesmo o tema de diversas teses, dissertações e monografias. Muitos de seus livros foram publicados em outros idiomas, como inglês, francês, italiano, espanhol, alemão e romeno.
Sua tese de doutoramento em teologia, “A Theology of Human Hope”, publicada em 1969 pela editora católica Corpus Books é, no seu entendimento, “um dos primeiros brotos daquilo que posteriormente recebeu o nome de Teologia da Libertação”.
Após se aposentar tornou-se proprietário de um restaurante na cidade de Campinas, onde deu vazão a seu amor pela cozinha. No local eram também ministrados cursos sobre cinema, pintura e literatura, além de contar com um ótimo trio com música ao vivo, sempre contando com “canjas” de alunos da Faculdade de Música da UNICAMP.


Sobre deuses, pássaros e gaiolas


Eu não tenho religião. Não vou a igrejas, não participo de rituais, não acredito nos seus dogmas. Preciso não ter religião para amar a Deus sem medo, com alegria e, principalmente, sem nada pedir. Não tenho religião porque não concordo com as coisas que elas dizem de Deus. Deus é um Grande Mistério. Está além das palavras. Diante do Grande Mistério a gente emudece. Fica em silêncio. Discordo a partir do pronome "ele". Deus "ele", masculino? Onde foi que aprenderam sobre o sexo de Deus? Deus tem sexo? Se tem sexo, por que não ela, Deus mulher? Como a mulher do Cântico dos Cânticos? A Igreja Católica não conhece a mulher. Conhece apenas a "mãe" que foi mãe sem ter sido mulher. Deus: por que não uma flor, a mais perfumada? Por que não um mar sem fim onde a vida navega? Místicos houve que disseram que Deus é uma criança que nos convida a brincar... Mas pode ser também que Deus seja música, como pensaram os místicos pitagóricos.

Ter uma religião é falar as palavras sagradas daquela religião e acreditar nelas. As religiões se distinguem e se separam: pelas diferenças das palavras que usam para se referir ao sagrado. Se elas nada falassem, se houvesse apenas o silêncio diante do Grande Mistério, a Babel das religiões não existiria. Diante do Grande Mistério apenas uma palavra é permitida, a palavra poética, porque a poesia não o diz mas apenas aponta para ele. O Grande Mistério está além das palavras.

Se tenho uma religião ela se chama poesia. Por isso, amo a Cecília Meireles, sacerdotisa profana, que quando queria se referir a Deus falava sobre um mar sem fim, misterioso e selvagem. Quem em silêncio contempla o mar sem fim ouve vozes em meio ao barulho das ondas. Também Fernando Pessoa sabia disso. Mas, prestando bem atenção, é possível ver, a voar sobre o mar sem fim, um pequeno pássaro que canta: "Leve é o pássaro: e a sua sombra voante, mais leve. E a cascata aérea de sua garganta: mais leve. E o que lembra, ouvindo-se deslizar seu canto, mais leve..."
 
Os poetas escrevem em transe: não sabem sobre que estão escrevendo. Faz muitos anos, escrevi um livro para minha filha. Ela tinha 4 anos. Eu iria fazer uma demorada viagem pelo exterior e ela ficou com medo de que eu morresse e não voltasse. Apareceu-me, então, uma estória, A menina e o pássaro encantado. Resumida, era assim: era uma vez uma menina que amava um pássaro encantado que sempre a visitava e lhe contava estórias, o pássaro a fazia imensamente feliz. Mas sempre chegava um momento quando o pássaro dizia: "Tenho de ir". A menina chorava porque amava o pássaro e não queria que ele partisse. "Menina", disse-lhe o pássaro, "aprenda o que vou lhe ensinar: eu só sou encantado por causa da ausência. É na ausência que a saudade vive. E a saudade é um perfume que torna encantados a todos os que o sentem. Quem tem saudades está amando. Tenho de partir para que a saudade exista e para que eu continue a amá-la, e você continue a me amar..." E partia. A menina, sofrendo a dor da saudade, maquinou um plano: quando o pássaro voltou e lhe contou estórias e foi dormir, ela o prendeu numa gaiola de prata dizendo: "Agora ele será meu para sempre". Mas não foi isso que aconteceu. O pássaro, sem poder voar, perdeu as cores, perdeu o brilho, perdeu a alegria, não mais tinha estórias para contar. E o amor acabou. Levou tempo para que a menina percebesse que ela não amava aquele pássaro engaiolado. O pássaro que ela amava era o pássaro que voava livre e voltava quando queria. E ela soltou o pássaro que voou para longe. A estória termina na ausência do pássaro e a menina se enfeitando para a sua volta.

Minha intenção, ao escrever esta estória, era simples: consolar a minha filha. Mas quando foi publicada ganhou um sentido que não estava nas minhas intenções: começou a ser usada em terapia, com casais possuídos pela ilusão de que, engaiolado, o amor seria posse eterna... Desde então passei a presentear noivos com uma gaiola da qual eu arrancava a porta. Mas, passado algum tempo, uma pessoa me disse: "Que linda estória você escreveu sobre Deus!" "Sobre Deus?", eu perguntei sem entender. "Sim", ela me respondeu. "O Pássaro Encantado não é Deus? E as gaiolas não são as religiões nas quais os homens tentam aprisioná-lo?" Aprendi, então, da minha própria estória, algo que não sabia: Deus como um Pássaro Encantado que me conta estórias. Amo o Pássaro. Odeio as gaiolas. O Pássaro Encantado: não pousa em galhos para cantar. Não é possível fotografá-lo. Canta enquanto voa. Dele, o que temos é apenas a sua leve sombra voante e a cascata aérea de sua garganta... Quando ouço o seu canto, ele já passou. Só é possível vê-lo em seu vôo, por trás. Vai-se o Pássaro. Fica a memória do seu canto.

Um pássaro voando é um pássaro livre. Não serve para nada. Impossível manipulá-lo, usá-lo, controlá-lo. Pássaro inútil. E esse é, precisamente, o seu segredo: a sua inutilidade: ele está além das maquinações dos homens. Sua única dádiva é o seu canto. Só faz um milagre, um único milagre: quando, chorando, lhe peço "Passa de mim esse cálice", ele canta e o seu canto transforma a minha tristeza em beleza. Por isso eu nada lhe peço. Sei que ele não atende a pedidos. O seu canto me basta: ao ouvi-lo transformo-me em pássaro. E vôo com ele...

Mas aí vêm os homens com as suas arapucas e gaiolas chamadas religiões. E cada uma delas diz haver conseguido prender o Pássaro Encantado em gaiolas de palavras, de pedra, de ritos e magia. E cada uma delas afirma que o seu pássaro engaiolado é o único Pássaro Encantado verdadeiro...

Por que prenderam o Pássaro? Porque o seu canto não lhes bastava. Não lhes bastava a beleza. Na verdade, não o amavam. O que os homens desejam não é a beleza de Deus. O que eles desejam é manipular o seu poder. O que eles querem é o milagre. O canto do pássaro poderia lhes dar asas para voar. Mas não é isso que querem. O que desejam é o poder do pássaro para continuar a rastejar: Deus, transformado em ferramenta. Ferramenta é um objeto que se usa para se atingir um fim desejado. Assim são os martelos, as tesouras, as panelas... O que as religiões desejam é transformar Deus em uma ferramenta a mais. A mais poderosa de todas. A ferramenta que realiza os desejos. Como o gênio da garrafa. Pois não é isso que é o milagre, a realização de um desejo por meio da manipulação do sagrado? Só é canonizada santa uma pessoa que realizou milagres: o milagre é o atestado do seu poder para manipular o divino.

E é assim que as religiões se multiplicam, porque os desejos dos homens não têm fim, e os seus santuários se enchem de santos de todos os tipos, os santos milagreiros são nossos despachantes espirituais, todos eles a serviço dos nossos desejos, atenderão nossos desejos a preço módico, se rezarmos a reza certa e prometermos publicar o milagre em jornal, e pela televisão se anunciam fórmulas, sessões de descarrego, águas bentas milagrosas, exorcismo de demônios, os DJs de cada religião têm uma música na fala que lhes é própria...

Assim, a poesia do canto do Pássaro Encantado se transforma em manipulação do pássaro engaiolado. E não percebem que aquele pássaro que têm dentro de suas gaiolas não é o Pássaro Encantado, que não se deixa engaiolar, porque é como o vento, e voa como quer, e tem uma única dádiva a oferecer aos homens: a beleza do seu canto. À transformação da poesia em manipulação milagreira os profetas deram o nome de idolatria.