Não me lembro
exatamente onde e quando entrei em contato com este texto do Rubem Alves, mas
não esqueço minha estupefação, meu fascínio. Eu o releio frequentemente. Fala do
mistério que é Deus e de como as religiões querem se apropriar Dele para
exercerem a manipulação da consciência, ingenuidade e esperança dos homens. O
texto é de um filósofo, mas um filósofo poeta, acima de tudo poeta. Texto
limpo, claro, emocionante. O texto que eu gostaria de ter escrito.
Por isto, resolvi partilhá-lo. Antes, um pouco
da vida de Rubem Alves e, a seguir, seu texto Sobre deuses, pássaros e gaiolas, do livro O mundo num grão de areia.
Rubem Alves
Nasceu no dia 15 de
setembro de 1933, em Boa Esperança, sul de Minas Gerais.
Psicanalista,
educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros e artigos abordando
temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros
infantis.
É Bacharel
em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, Mestre
em Teologia e Doutor
em Filosofia
(Ph.D.)
pelo Seminário Teológico de
Princeton (EUA). Lecionou no Instituto Presbiteriano Gammon,
na cidade de Lavras, Minas Gerais, no Seminário Presbiteriano de Campinas, na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio
Claro e na UNICAMP, onde recebeu o título de Professor
Emérito. Tem um grande número de publicações, tais como crônicas,
ensaios
e contos,
além de ser ele mesmo o tema de diversas teses, dissertações
e monografias.
Muitos de seus livros
foram publicados em outros idiomas, como inglês, francês, italiano, espanhol,
alemão e romeno.
Sua tese de doutoramento em teologia, “A Theology of Human
Hope”, publicada em 1969 pela editora católica Corpus Books é, no seu
entendimento, “um dos primeiros brotos daquilo que posteriormente recebeu o
nome de Teologia da Libertação”.
Após se aposentar tornou-se proprietário de um restaurante
na cidade de Campinas, onde deu vazão a seu amor pela cozinha. No local eram
também ministrados cursos sobre cinema, pintura e literatura, além de contar
com um ótimo trio com música ao vivo, sempre contando com “canjas” de alunos da
Faculdade de Música da UNICAMP.
Sobre deuses, pássaros e gaiolas
Eu não tenho religião. Não vou a igrejas, não participo de rituais, não acredito nos seus dogmas. Preciso não ter religião para amar a Deus sem medo, com alegria e, principalmente, sem nada pedir. Não tenho religião porque não concordo com as coisas que elas dizem de Deus. Deus é um Grande Mistério. Está além das palavras. Diante do Grande Mistério a gente emudece. Fica em silêncio. Discordo a partir do pronome "ele". Deus "ele", masculino? Onde foi que aprenderam sobre o sexo de Deus? Deus tem sexo? Se tem sexo, por que não ela, Deus mulher? Como a mulher do Cântico dos Cânticos? A Igreja Católica não conhece a mulher. Conhece apenas a "mãe" que foi mãe sem ter sido mulher. Deus: por que não uma flor, a mais perfumada? Por que não um mar sem fim onde a vida navega? Místicos houve que disseram que Deus é uma criança que nos convida a brincar... Mas pode ser também que Deus seja música, como pensaram os místicos pitagóricos.
Ter uma religião é falar as palavras sagradas
daquela religião e acreditar nelas. As religiões se distinguem e se separam:
pelas diferenças das palavras que usam para se referir ao sagrado. Se elas nada
falassem, se houvesse apenas o silêncio diante do Grande Mistério, a Babel das
religiões não existiria. Diante do Grande Mistério apenas uma palavra é
permitida, a palavra poética, porque a poesia não o diz mas apenas aponta para
ele. O Grande Mistério está além das palavras.
Se tenho uma religião ela se chama poesia. Por
isso, amo a Cecília Meireles, sacerdotisa profana, que quando queria se referir
a Deus falava sobre um mar sem fim, misterioso e selvagem. Quem em silêncio
contempla o mar sem fim ouve vozes em meio ao barulho das ondas. Também
Fernando Pessoa sabia disso. Mas, prestando bem atenção, é possível ver, a voar
sobre o mar sem fim, um pequeno pássaro que canta: "Leve é o pássaro: e a
sua sombra voante, mais leve. E a cascata aérea de sua garganta: mais leve. E o
que lembra, ouvindo-se deslizar seu canto, mais leve..."
Minha intenção, ao escrever esta estória, era simples: consolar a minha filha. Mas quando foi publicada ganhou um sentido que não estava nas minhas intenções: começou a ser usada em terapia, com casais possuídos pela ilusão de que, engaiolado, o amor seria posse eterna... Desde então passei a presentear noivos com uma gaiola da qual eu arrancava a porta. Mas, passado algum tempo, uma pessoa me disse: "Que linda estória você escreveu sobre Deus!" "Sobre Deus?", eu perguntei sem entender. "Sim", ela me respondeu. "O Pássaro Encantado não é Deus? E as gaiolas não são as religiões nas quais os homens tentam aprisioná-lo?" Aprendi, então, da minha própria estória, algo que não sabia: Deus como um Pássaro Encantado que me conta estórias. Amo o Pássaro. Odeio as gaiolas. O Pássaro Encantado: não pousa em galhos para cantar. Não é possível fotografá-lo. Canta enquanto voa. Dele, o que temos é apenas a sua leve sombra voante e a cascata aérea de sua garganta... Quando ouço o seu canto, ele já passou. Só é possível vê-lo em seu vôo, por trás. Vai-se o Pássaro. Fica a memória do seu canto.
Um pássaro voando é um pássaro livre. Não serve para nada. Impossível manipulá-lo, usá-lo, controlá-lo. Pássaro inútil. E esse é, precisamente, o seu segredo: a sua inutilidade: ele está além das maquinações dos homens. Sua única dádiva é o seu canto. Só faz um milagre, um único milagre: quando, chorando, lhe peço "Passa de mim esse cálice", ele canta e o seu canto transforma a minha tristeza em beleza. Por isso eu nada lhe peço. Sei que ele não atende a pedidos. O seu canto me basta: ao ouvi-lo transformo-me em pássaro. E vôo com ele...
Mas aí vêm os homens com as suas arapucas e gaiolas chamadas religiões. E cada uma delas diz haver conseguido prender o Pássaro Encantado em gaiolas de palavras, de pedra, de ritos e magia. E cada uma delas afirma que o seu pássaro engaiolado é o único Pássaro Encantado verdadeiro...
Por que prenderam o Pássaro? Porque o seu canto não lhes bastava. Não lhes bastava a beleza. Na verdade, não o amavam. O que os homens desejam não é a beleza de Deus. O que eles desejam é manipular o seu poder. O que eles querem é o milagre. O canto do pássaro poderia lhes dar asas para voar. Mas não é isso que querem. O que desejam é o poder do pássaro para continuar a rastejar: Deus, transformado em ferramenta. Ferramenta é um objeto que se usa para se atingir um fim desejado. Assim são os martelos, as tesouras, as panelas... O que as religiões desejam é transformar Deus em uma ferramenta a mais. A mais poderosa de todas. A ferramenta que realiza os desejos. Como o gênio da garrafa. Pois não é isso que é o milagre, a realização de um desejo por meio da manipulação do sagrado? Só é canonizada santa uma pessoa que realizou milagres: o milagre é o atestado do seu poder para manipular o divino.
E é assim que as religiões se multiplicam, porque os desejos dos homens não têm fim, e os seus santuários se enchem de santos de todos os tipos, os santos milagreiros são nossos despachantes espirituais, todos eles a serviço dos nossos desejos, atenderão nossos desejos a preço módico, se rezarmos a reza certa e prometermos publicar o milagre em jornal, e pela televisão se anunciam fórmulas, sessões de descarrego, águas bentas milagrosas, exorcismo de demônios, os DJs de cada religião têm uma música na fala que lhes é própria...
Assim, a poesia do canto do Pássaro Encantado se transforma em manipulação do pássaro engaiolado. E não percebem que aquele pássaro que têm dentro de suas gaiolas não é o Pássaro Encantado, que não se deixa engaiolar, porque é como o vento, e voa como quer, e tem uma única dádiva a oferecer aos homens: a beleza do seu canto. À transformação da poesia em manipulação milagreira os profetas deram o nome de idolatria.