Necessários no sentido de riscar, traçar linhas que podem ser desenhos ou letras compondo uma ideia... ou mesmo os riscos que somos levados a correr durante a vida... Tanto os riscos/traços/letras quanto os riscos/viver/arriscar são necessários para a sobrevivência dos nossos sonhos, nosso ego, e até mesmos dos nossos fantasmas...


domingo, 25 de abril de 2010

Os livros de meu pai


Cresci entre livros. Meu pai, professor de português, era acima de tudo um bibliófilo e possuía uma coleção de livros com mais de três mil títulos, o que para a época e lugar era algo quase inusitado. A casa onde morávamos era antiga e bem grande. Nela havia uma sala sem saída, era aberta, uma espécie de extensão da sala de “televisão”. Não havia porta nem janelas nesta sala, e foi aí que ele mandou fazer estantes de alvenaria e tábuas de madeira nas três paredes para receber seus livros. Era a nossa “biblioteca”.

Com ele aprendi a reverenciar os livros. Adorava visitar a “biblioteca” e ficar horas fuçando e descobrindo aquele universo. Livros antigos com traças, livros novos com capas modernas, coleções de enciclopédias, dicionários (muitos e de todos os tipos), romances brasileiros e estrangeiros, livros de gramática portuguesa e brasileira, enormes volumes sobre lingüística e filologia, coleções sobre história, filosofia, geografia, psicologia... o mundo estava inteirinho ali, naquela sala.

Lembro quando chegava da escola com trabalho para fazer e pedia ajuda a meu pai (afinal, ele era a própria enciclopédia). Ele me levava à biblioteca, separava três ou quatro livros, me entregava e, um tanto lacônico, dizia: “neste, você encontra isso, aquilo e aquiloutro; naquele, você vai saber sobre tal coisa; e no terceiro tem tudo sobre tal assunto”. E eu que me virasse (hoje, muitos pais fazem os trabalhos escolares dos filhos através do “Control C/Control V” na internet – chamam a isso de pesquisa – e não entendem porque seus pimpolhos não sabem nada e não querem estudar...).

Outro aprendizado que tive foi o de “encadernador”. Pois é, meu pai tinha seu próprio “pronto-socorro do livro”: ele mesmo fazia costura de livros e colocava as capas duras em “brochuras”, que eram a maioria das edições populares, mais baratas. Também comprava as coleções em fascículos, tipo “Conhecer”, “Medicina e Saúde”, e tantas outras muito populares na época, que nós dois costurávamos e montávamos as capas. Como não tínhamos guilhotina, as páginas eram aparadas com uma “grosa”, que é uma espécie de lima grossa para desbastar madeira, que produzia um acabamento grosseiro. Hoje, observo que as encadernações que meu pai fez quando ele era mais jovem tinham melhor acabamento que as que eu ajudei a fazer. Talvez os equipamentos usados fossem mais adequados, ou, quando mais velho, já não tivesse a destreza ou mesmo a paciência de outrora. Acho, também, que como ajudante, eu não fui bom artesão...

Mas, tudo isso foi importante para consolidar minha paixão pelos livros. Não só pelos conteúdos, mas também pela sua forma, hoje falamos em “design”... belas capas, tipologias limpas, ilustrações maravilhosas (só agora estou me dando conta da influência dessa história nos meus 37 anos de trabalho com design e produção gráfica). Enfim, tudo deixa suas marcas.

E alguns registros são indeléveis. Adolescente, pego o exemplar de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, 19ª edição corrigida, de 1946, com capa dura e uma ilustração maravilhosa, que me impressionou profundamente. Eu queria aquele livro para mim... não bastava ele estar na “nossa” biblioteca, eu o queria para mim (após o falecimento de meu pai e, quase dez anos depois, de minha mãe, a biblioteca foi “dividida” entre herdeiros. O exemplar de Os Sertões acabou ficando comigo, com uma mancha na capa produzida por goteira de chuva, que quase desmanchou o livro. Ainda consegui recuperá-lo, porém não houve como eliminar a mancha na capa - ver foto). Posteriormente, sócio do antigo “Círculo do Livro”, adquiri um exemplar de Os Sertões, também primorosamente editado, com cuidadas e sensíveis ilustrações de Alfredo Aquino.

Além de algumas edições caprichosamente editadas, algumas delas com datas do início do século passado, impressas em Portugal (infelizmente, a maioria não está bem conservada), guardo com muito carinho um exemplar de “Histórias sem data”, de Machado de Assis, publicado em 1884. Também bastante “machucado” pelo tempo e por manuseio indevido, é o livro mais antigo dos que tenho guardados comigo. Possivelmente tenha sido também o mais antigo da biblioteca de meu pai. Seu valor é imensamente afetivo.

Hoje, continuo tendo um grande prazer quando estou entre meus livros, quando abro um exemplar para iniciar nova leitura... Acresci minha coleção (que não ouso chamar de biblioteca) com algumas obras importantes, outras nem tanto e algumas sem valor algum (principalmente literário). Mas, insisto em guardar também estes. Por que, não sei.

7 comentários:

  1. Que felicidade te ver por aqui e que belo e emocionante (emocionado)texto! Conheci também esta biblioteca, o amor que seu Eurico tinha por ela. Mais que qualquer outra coisa ela merecia ser o tema de sua primeira postagem no novo blog.
    Ainda vou fazer meu blog de textos. Gosto disso... dessa coisa tipo, diário de emoções. Quero novos posts porque poucas vezes eu te disse que você escreve bem, muito bem.
    É um orgulho ser seu amigo!
    Abraço e beijo grande!
    E viva nós!!!!!!!!!!

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  2. Se o grande Geraldo Roberto da Silva, vulgo Betinho, tem orgulho em ser amigo do meu tio Aluizio, o que diria eu então... um reles borra-botas! Parabéns Louis Brown.

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  3. Tanta coisa q eu nem sabia da historia do meu PAI (q orgulho!!!!)... Já conheci os livros na nossa casa, sempre tratados com tanto respeito mas sempre abertos pra gente ler... Antes da era google, sempre encontrava coisas pra pesquisar e meu pai sempre me MANDAVA pra biblioteca publica fazer pesquisas...bons tempos! Meu texto sobre livros no futuro será sobre os seus, sua "coleção" q sempre foi o canto do papai na casa! Cheirinho de livro... e as mudanças!!!! AH!! quando íamos organizar a "biblioteca"! trabalheira da porra! Nunca ficou como "deve", motivo pra sempre querermos organizá-lá de novo! Em família, claro!

    Q texto lindo! mas nenhuma surpresa, vc escreve maravilhosamente bem, como já disse!

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  4. Lés-Sândar Inês Viana12 de maio de 2010 às 07:53

    Xico, amor meu, que lindo seu texto! Continue escrevendo para a alegria dos leitores.
    Beijos.

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  5. Você mostra que tem potencial e muita história para contar. Mais que méritos e predicados é importante que elas sejam contadas, divididas revividas e experiênciadas e isto você já começou.
    Por falar nisso, adorei o texto.

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  6. Sou de Pernambuco, sou da Bahia, sou da Caatinga, sou da Região Cacaueira, sou de Salvador e num tempo andei sendo de Viçosa(MG), onde cursei um mestrado na UFV. Posso dizer que que também sou do Recife, de Juazeiro(BA) e de Petrolina, onde um dia nasci na casa construída em 1892, aproximadamente, por meu Avô Marcelino Sant'Anna,
    que não conheci, que foi comerciante, foi prefeito em 1913-1916; casa ainda hoje habitada por minha irmã, Maria Francisca; casa onde minha Avó, Sinhazinha, -- conheci, convivi e aprendi com ela -- teve 20 filhos e criou mais 20, nunca reunindo os 40, até mesmo por força da mortalidade infantil de então. Na casa de meus Avós, data certa, nesceram, entre muitos, dois tios meus, Tia Sizina em 1895, junto com o município de Petrolina e Tio Celino, Marcelino, em 1910, coetano com o município de Itabuna, onde depois ele laborou, meu irmão Hírcio e eu também, em tempos nem sempre interceptados. Minha Mãe, Ivone, lá nasceu em 1911. Tudo isso pra dizer que, mesmo rodado, quilometrado, ainda gosto de coisa boa, como a biblioteca de seu Pai e a edição de 1945 de OS SERTÕES. Mesmo com a marca d'água ela ainda emparceira com as poucas que temho aqui. Até uma estadunidense de Putnam, em roupa nova, quase de bolso, de bolsa com certeza e com uma que ainda não apareceu, não foi escrita,, nem editada, em Esperanto, mas que já tem lugar garantido na bagunça das outras.

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  7. E em Juazeiro, Bahia, conheci e fui colega no Banco do Brasil de outro Aloísio Viana ( in memoriam), grande desportista, atleta -- era ponta direita e de óculos --, neto de Dr. Adolfo Viana-- que conheci -- , médico de meu Avô, grande figura, a cara de Eistein e que, quando estudande de Medicina teria participado na Guerra de Canudos.

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